quarta-feira, 27 de junho de 2012

Conto Sem Título #5


Hoje eu voltei do trabalho com cinqüenta reais a mais na carteira. Depois de ininterruptos cinco meses pedindo um aumento, eu finalmente consegui – se é que isso pode ser chamado de aumento. O caso é que vou começar a guardar as sobras do meu salário. Mesmo que não seja uma quantia muito grande, daqui a algum tempo, se eu precisar de uma reserva, eu terei. Amanhã mesmo vou correndo até o banco que fica próximo ao bar em que trabalho e criarei uma conta pra mim. Já tenho alguns trocados que venho colocando embaixo do colchão, mas considerando o local onde moro, isto não é muito seguro. Se você visse o lugar, entenderia o por que.

Por pouco não perco todas as minhas anotações. Essa passou muito perto. Enquanto deixei as folhas sobre a mesa, fui até a cozinha ver se tinha algo para beber, além de café. Não tinha. O pó negro e perfumado era suficiente apenas para encher só mais uma xícara. Fiz o que seria meu jantar e voltei para a sala, por incrível que pareça, estava com vontade de escrever mais. A janela que estava aberta permitia que as rajadas de vento entrassem sorrateiramente. Se eu tivesse chegado alguns minutos depois, as folhas teriam saído janela afora. Mas fui mais rápido. Em um movimento de reflexo, segurei os papéis antes que fugissem de mim. A xícara, por sua vez, foi ao chão. Para um lado, cacos de cerâmica barata; para outro, respingos do líquido escuro. Droga. Meu último café e minha última xícara. Sentei na cadeira, irritado. Lembrei que a culpa disso era apenas minha. Tanto pelo fato de ter só mais uma xícara, visto que quebrei todas em um acesso de loucura no mês passado, e do café... Que eu sempre deixo acabar para comprar mais. Saco! Terei que ir ao vizinho ver se ele tem alguma coisa para me emprestar, visto que os mercadinhos da rua já estão fechados há horas.

Toc, toc. Bato timidamente na porta. Apesar de ouvir barulhos vindos lá de dentro, já passa das 2 da manhã. É sábado, eu sei, mas mesmo assim. Eu nunca dei as caras por aqui, nem sei quem mora, mas somos vizinhos e espero que o espírito de fraternidade tome conta daquele coração. As piores opções que tenho é que pode ser desde um maníaco sexual que tem tara por magricelas como eu, até uma velha assanhada. Mas já estou na merda mesmo, pior não pode ficar. Universo, isso foi uma constatação, não um desafio. É isso ou ter que caminhar, nesse frio, até a porra do centro pra comprar alguma coisa em uma conveniência. Optei por me arriscar no quentinho da minha zona de conforto. Continuei batendo na porta, dessa vez com mais força.

Passados dez minutos, o barulho de chave virando, me fez alertar os olhos. Dei um passo para trás.

- Oi? – Uma criatura loira apareceu na porta entreaberta. Sua voz era especulativa. “Que diabos este cara tá fazendo aqui? Aliás, quem é ele?” aposto que era isso que se passava na sua cabeça.
- Oi. Boa noite. – Tentativa falha de sorriso. – Tudo bom?
- Você é daquelas “Testemunhas de Jeová” ou o que? Aposto que não veio até aqui, há essa hora, pra me perguntar se estou bem ou jogar conversa fora.
- Você tem razão. Eu moro no apartamento ao lado. E acabei de deixar cair uma xícara com café, que por acaso era meu último café e minha ultima xícara. Era o meu jantar.
- Aí você resolveu bater na minha porta às... – Parou, virou para trás e mirou as horas no relógio grande de parede. Um modelo antigo. Bonito, por sinal. Enquanto ela tentava ver em quais números os ponteiros pousavam, eu parei para repará-la. Seus cabelos dourados e compridos iam até a cintura. Lisos. Extremamente lisos. Alguns centímetros abaixo de mim. Corpo bonito e proporcional, combinando com seu rosto. – duas e pouco. – Pelo visto não conseguira enxergar os minutos. – Enfim, tarde da noite, pra me pedir café? Ou uma xícara? Não consegui entender.
- Duas e quinze. – Falei. – E sim, basicamente foi isso. – Se defeito ou qualidade não sei, mas a sinceridade sempre foi meu forte. Não gosto de enrolar muito. Mas às vezes é necessário... Enfim.
- E o que você estava pensando? Que eu daria algo meu, xícara ou café, assim pra um desconhecido?
- Bom, na verdade não sei o que eu estava pensando. Desculpe incomodar. – Virei as costas, pronto para voltar ao meu apartamento.
- Espere. – Ela disse quando eu abri a porta que não ficava muito longe da dela. – Acho que posso lhe fazer esse favor.

Voltei imediatamente para a porta em que ela estava. Convidou-me a entrar com a mão esquerda, pequena e branca, assim como o seu rosto. Entrei.

- Obrigado. Mesmo. Se você não tivesse algo pra me emprestar acho que teria que ir até o centro, afinal, as lojas aqui já fecharam.
- Você não precisa me dar explicações. – Falou enquanto pegava uma xícara no armário e colocava sobre a mesa da cozinha. Eu me apoiei em uma cadeira, observando seus movimentos. Tirou de outro armário uma chaleira, colocando água dentro dela e acendendo o fogo, com ela em cima.
- Pode deixar que eu mesmo faço. Em casa.
- Tô precisando de companhia mesmo. – Deu de ombros e soltou o primeiro sorriso da madrugada. Eu não disse mais nada, apenas assistia enquanto suas mãos habilidosas preparavam o café.
- Parece que você gosta de café também. – Eu disse enquanto ela pegava outra xícara, colocando as duas sobre a mesa. Despejou o líquido quente dentro delas, empurrando uma até a extremidade da mesa em que eu me encontrava.
- Senta. – Em tom de ordem, que entendi como pedido, obedeci prontamente. – Eu gosto de café sim. – E tirou uma forma de dentro do forno atrás de si. Colocou sobre a mesa. O cheiro era delicioso. Um bolo... Será? Não me atrevi a perguntar. Apenas beberiquei o café lentamente, afinal, estava quente.
- Do jeito que eu gosto. – Comentei, sorrindo.
- Sirva-se. Falou após me entregar uma faca e deixar a forma, agora sem tampa, mais perto de mim. Nega maluca, eu não poderia recusar, por mais que minha educação dissesse que não deveria pegar. 

Tirei um pedaço pequeno. Enfiei quase todo na boca enquanto ela não olhava. Delicioso. Minha vontade era pegar mais, porém não queria abusar. Tapei os ouvidos para meu estomago que roncava e passei a prestar atenção nas palavras dela.

- Eu moro sozinha. Trabalho, estudo, mas nunca arrumo um tempo para me divertir. É foda. Aí como tenho várias coisas da faculdade pra ler, estudar, não me faz tanta falta uma conversa, mas mesmo assim. O café se tornou meu companheiro das madrugadas em que passo lendo. Meus livros são meus amores. Você gosta de ler?
- Sim, eu gosto. – Eu e minha mania de querer impressionar quem quer que seja e use saias.
- Tem algum escritor de sua preferência? Eu gosto muito do Machado. As obras dele são fascinantes.
- Eu gosto desse também. – Machado quem?
- Qual sua obra preferida?
- Aquela da mulher... Sabe? E do menino. E o vilão.
- Qual? – Pensei que seria pego na mentira. – Ah, deixa pra lá. Agora me fala sobre você. Mora aqui há muito tempo?
- Sim. – Ufa! Não agüentaria fingir por muito tempo. – Tempão. E você?
- É, faz tempo já. Um ano. Um pouco mais, talvez. Engraçado a gente nunca ter se encontrando por ai.
- Verdade. Mas eu paro pouco em casa. Quando não to no bar, vou pra casa de algum amigo, não gosto da solidão.
- Hm... Nem eu. Mas infelizmente não posso fazer nada. – Baixou os olhos, a face triste.
- Calma. Você tem suas colegas da faculdade, não? Trabalha... Deve ter muita gente que gosta de você.
- Hoje em dia é difícil achar alguém confiável. Desde que me mudei pra cá, já apanhei muito da vida. Cresci muito. Tenho o coração muito mole, acredito em todo mundo e no fim eu me ferro. Já era pra eu ter aprendido, mas não consigo. Sou muito ingênua em alguns aspectos.
- Você tem razão. Hoje em dia o que mais tem por ai são filhos da puta. Mas sempre tem alguém no meio dessa merda toda que se destaca. Sempre tem alguém que a gente pode confiar. Porque ficar sozinho não dá.  Esse papo de ser feliz sozinho não cola comigo.
- Acho que nosso papo tá tomando rumos muito depressivos. Vamos mudar de assunto.

Passamos mais algum tempo conversando. Os minutos voaram. Quando nos demos conta, estava quase de manhã. Foram várias xícaras de café, vários pedaços de bolo e vários assuntos. Deu pra esquecer a porcaria que era a minha vida. Mas uma a realidade tem que vir à tona, né?

- Até qualquer hora... – Ela se tocou de que não tínhamos nos apresentado. – Qual seu nome, aliás?
- Beto. – Ambos rimos. – E o seu?
- Desiree.
- Que diabos de nome é Desiree?
- Outra hora você volta, aí eu conto a história. Prometo.
- Eu vou cobrar, hein. – Ela sorria docemente.
- Pode cobrar.

Acenei como despedida e girei os calcanhares. Tomei a direção da minha casa, enquanto ela fechava a porta delicadamente. Como eu nunca a conheci antes? Um ótimo tipo para se ter como amiga. Eu vou voltar, ela que me espere. Pode esperar mesmo. 

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