Hoje eu voltei do trabalho
com cinqüenta reais a mais na carteira. Depois de ininterruptos cinco meses
pedindo um aumento, eu finalmente consegui – se é que isso pode ser chamado de
aumento. O caso é que vou começar a guardar as sobras do meu salário. Mesmo que
não seja uma quantia muito grande, daqui a algum tempo, se eu precisar de uma
reserva, eu terei. Amanhã mesmo vou correndo até o banco que fica próximo ao
bar em que trabalho e criarei uma conta pra mim. Já tenho alguns trocados que
venho colocando embaixo do colchão, mas considerando o local onde moro, isto
não é muito seguro. Se você visse o lugar, entenderia o por que.
Por pouco não perco todas
as minhas anotações. Essa passou muito perto. Enquanto deixei as folhas sobre a
mesa, fui até a cozinha ver se tinha algo para beber, além de café. Não tinha.
O pó negro e perfumado era suficiente apenas para encher só mais uma xícara.
Fiz o que seria meu jantar e voltei para a sala, por incrível que pareça,
estava com vontade de escrever mais. A janela que estava aberta permitia que as
rajadas de vento entrassem sorrateiramente. Se eu tivesse chegado alguns minutos
depois, as folhas teriam saído janela afora. Mas fui mais rápido. Em um
movimento de reflexo, segurei os papéis antes que fugissem de mim. A xícara,
por sua vez, foi ao chão. Para um lado, cacos de cerâmica barata; para outro,
respingos do líquido escuro. Droga. Meu último café e minha última xícara.
Sentei na cadeira, irritado. Lembrei que a culpa disso era apenas minha. Tanto
pelo fato de ter só mais uma xícara, visto que quebrei todas em um acesso de
loucura no mês passado, e do café... Que eu sempre deixo acabar para comprar
mais. Saco! Terei que ir ao vizinho ver se ele tem alguma coisa para me
emprestar, visto que os mercadinhos da rua já estão fechados há horas.
Toc, toc. Bato timidamente
na porta. Apesar de ouvir barulhos vindos lá de dentro, já passa das 2 da
manhã. É sábado, eu sei, mas mesmo assim. Eu nunca dei as caras por aqui, nem
sei quem mora, mas somos vizinhos e espero que o espírito de fraternidade tome
conta daquele coração. As piores opções que tenho é que pode ser desde um
maníaco sexual que tem tara por magricelas como eu, até uma velha assanhada.
Mas já estou na merda mesmo, pior não pode ficar. Universo, isso foi uma
constatação, não um desafio. É isso ou ter que caminhar, nesse frio, até a
porra do centro pra comprar alguma coisa em uma conveniência. Optei por me
arriscar no quentinho da minha zona de conforto. Continuei batendo na porta,
dessa vez com mais força.
Passados dez minutos, o
barulho de chave virando, me fez alertar os olhos. Dei um passo para trás.
- Oi? – Uma criatura loira
apareceu na porta entreaberta. Sua voz era especulativa. “Que diabos este cara
tá fazendo aqui? Aliás, quem é ele?” aposto que era isso que se passava na sua
cabeça.
- Oi. Boa noite. –
Tentativa falha de sorriso. – Tudo bom?
- Você é daquelas
“Testemunhas de Jeová” ou o que? Aposto que não veio até aqui, há essa hora,
pra me perguntar se estou bem ou jogar conversa fora.
- Você tem razão. Eu moro
no apartamento ao lado. E acabei de deixar cair uma xícara com café, que por
acaso era meu último café e minha ultima xícara. Era o meu jantar.
- Aí você resolveu bater
na minha porta às... – Parou, virou para trás e mirou as horas no relógio
grande de parede. Um modelo antigo. Bonito, por sinal. Enquanto ela tentava ver
em quais números os ponteiros pousavam, eu parei para repará-la. Seus cabelos
dourados e compridos iam até a cintura. Lisos. Extremamente lisos. Alguns
centímetros abaixo de mim. Corpo bonito e proporcional, combinando com seu
rosto. – duas e pouco. – Pelo visto não conseguira enxergar os minutos. –
Enfim, tarde da noite, pra me pedir café? Ou uma xícara? Não consegui entender.
- Duas e quinze. – Falei.
– E sim, basicamente foi isso. – Se defeito ou qualidade não sei, mas a
sinceridade sempre foi meu forte. Não gosto de enrolar muito. Mas às vezes é
necessário... Enfim.
- E o que você estava
pensando? Que eu daria algo meu, xícara ou café, assim pra um desconhecido?
- Bom, na verdade não sei
o que eu estava pensando. Desculpe incomodar. – Virei as costas, pronto para
voltar ao meu apartamento.
- Espere. – Ela disse
quando eu abri a porta que não ficava muito longe da dela. – Acho que posso lhe
fazer esse favor.
Voltei imediatamente para
a porta em que ela estava. Convidou-me a entrar com a mão esquerda, pequena e
branca, assim como o seu rosto. Entrei.
- Obrigado. Mesmo. Se você
não tivesse algo pra me emprestar acho que teria que ir até o centro, afinal,
as lojas aqui já fecharam.
- Você não precisa me dar
explicações. – Falou enquanto pegava uma xícara no armário e colocava sobre a
mesa da cozinha. Eu me apoiei em uma cadeira, observando seus movimentos. Tirou
de outro armário uma chaleira, colocando água dentro dela e acendendo o fogo,
com ela em cima.
- Pode deixar que eu mesmo
faço. Em casa.
- Tô precisando de
companhia mesmo. – Deu de ombros e soltou o primeiro sorriso da madrugada. Eu não disse
mais nada, apenas assistia enquanto suas mãos habilidosas preparavam o café.
- Parece que você gosta de
café também. – Eu disse enquanto ela pegava outra xícara, colocando as duas
sobre a mesa. Despejou o líquido quente dentro delas, empurrando uma até a
extremidade da mesa em que eu me encontrava.
- Senta. – Em tom de
ordem, que entendi como pedido, obedeci prontamente. – Eu gosto de café sim.
– E tirou uma forma de dentro do forno atrás de si. Colocou sobre a mesa. O
cheiro era delicioso. Um bolo... Será? Não me atrevi a perguntar. Apenas
beberiquei o café lentamente, afinal, estava quente.
- Do jeito que eu gosto. –
Comentei, sorrindo.
- Sirva-se. Falou após me
entregar uma faca e deixar a forma, agora sem tampa, mais perto de mim. Nega
maluca, eu não poderia recusar, por mais que minha educação dissesse que não
deveria pegar.
Tirei um pedaço pequeno.
Enfiei quase todo na boca enquanto ela não olhava. Delicioso. Minha vontade era
pegar mais, porém não queria abusar. Tapei os ouvidos para meu estomago que
roncava e passei a prestar atenção nas palavras dela.
- Eu moro sozinha.
Trabalho, estudo, mas nunca arrumo um tempo para me divertir. É foda. Aí como
tenho várias coisas da faculdade pra ler, estudar, não me faz tanta falta uma
conversa, mas mesmo assim. O café se tornou meu companheiro das madrugadas em
que passo lendo. Meus livros são meus amores. Você gosta de ler?
- Sim, eu gosto. – Eu e
minha mania de querer impressionar quem quer que seja e use saias.
- Tem algum escritor de
sua preferência? Eu gosto muito do Machado. As obras dele são fascinantes.
- Eu gosto desse também. –
Machado quem?
- Qual sua obra preferida?
- Aquela da mulher...
Sabe? E do menino. E o vilão.
- Qual? – Pensei que seria
pego na mentira. – Ah, deixa pra lá. Agora me fala sobre você. Mora aqui há
muito tempo?
- Sim. – Ufa! Não
agüentaria fingir por muito tempo. – Tempão. E você?
- É, faz tempo já. Um ano.
Um pouco mais, talvez. Engraçado a gente nunca ter se encontrando por ai.
- Verdade. Mas eu paro
pouco em casa. Quando não to no bar, vou pra casa de algum amigo, não gosto da
solidão.
- Hm... Nem eu. Mas
infelizmente não posso fazer nada. – Baixou os olhos, a face triste.
- Calma. Você tem suas
colegas da faculdade, não? Trabalha... Deve ter muita gente que gosta de você.
- Hoje em dia é difícil
achar alguém confiável. Desde que me mudei pra cá, já apanhei muito da vida.
Cresci muito. Tenho o coração muito mole, acredito em todo mundo e no fim eu me
ferro. Já era pra eu ter aprendido, mas não consigo. Sou muito ingênua em
alguns aspectos.
- Você tem razão. Hoje em
dia o que mais tem por ai são filhos da puta. Mas sempre tem alguém no meio
dessa merda toda que se destaca. Sempre tem alguém que a gente pode confiar.
Porque ficar sozinho não dá. Esse papo
de ser feliz sozinho não cola comigo.
- Acho que nosso papo tá
tomando rumos muito depressivos. Vamos mudar de assunto.
Passamos mais algum tempo
conversando. Os minutos voaram. Quando nos demos conta, estava quase de manhã.
Foram várias xícaras de café, vários pedaços de bolo e vários assuntos. Deu pra
esquecer a porcaria que era a minha vida. Mas uma a realidade tem que vir à
tona, né?
- Até qualquer hora... –
Ela se tocou de que não tínhamos nos apresentado. – Qual seu nome, aliás?
- Beto. – Ambos rimos. – E
o seu?
- Desiree.
- Que diabos de nome é
Desiree?
- Outra hora você volta,
aí eu conto a história. Prometo.
- Eu vou cobrar, hein. –
Ela sorria docemente.
- Pode cobrar.
Acenei como despedida e
girei os calcanhares. Tomei a direção da minha casa, enquanto ela fechava a
porta delicadamente. Como eu nunca a conheci antes? Um ótimo tipo para se ter
como amiga. Eu vou voltar, ela que me espere. Pode esperar mesmo.
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